A reportagem mensal de abril do D13 traz um texto publicado no site da revista The New Yorker em abril de 2012. Ele aborda a questão do significado da morte de crianças, especialmente quando essas são meninas brancas e loiras, e a reação de algumas pessoas ao ver que no filme Jogos Vorazes uma garota negra acaba tendo o mesmo tipo de morte. Além disso, o texto complementa dizendo que a morte de Rue, ainda que bonita, como a das meninas brancas inocentes, também é diferente da delas por estimular a revolução.
O texto, de certa forma, pode ser considerado um complemento da leitura do texto, também da The New Yorker, Brancos até provados negros: imaginando raças em Jogos Vorazes, publicado aqui no D13 em dezembro do ano passado. Este aborda o preconceito e estranhamento de algumas pessoas em relação à escolha dos atores que interpretaram a Rue e Thresh na adaptação cinematográfica do livro da autora Suzanne Collins.
O texto original de Pequena, loira, inocente e morta você confere aqui. A tradução pode ser lida abaixo.
PEQUENA, LOIRA, INOCENTE, E MORTA
Postada por Maria Tatar | Publicado em: 11 de abril de 2012
Dias após “Jogos Vorazes” estrear nos cinemas, alguns poucos críticos notaram que a uma vez sagrada, proibição contra a matança de crianças na tela, foi espetacularmente violada. Ao invés de falar sobre isso, o cyberespaço se inundou com mensagens sobre a etnia dos tributos, vítimas do Distrito 11, Thresh e Rue. As duas são personagens realmente cativantes que foram sacrificadas no espetáculo de violência a céu aberto dos Jogos Vorazes. Um dos tweets foi particularmente ácido: “Aquele momento quando Rue é uma garota negra e não a pequena e inocente garotinha loira que você imagina”. Isso rapidamente tornou-se um viral, alimentando a questão que Anna Holmes escreveu no Book Bench recentemente sobre como as “pequenas garotinhas loiras” são indelevelmente relacionadas com uma imagem de inocência.
Crianças — inocentes, puras e “envolvidas em nuvens de glória” — têm redimido adultos depravados desde antes de o menino Jesus nascer em Belém. Escritores do século XIX em particular, têm imaginações fora do comum quando se trata de crianças condenadas a “bode expiatório” tendo suas mortes como sacrifício. A Pequena Eva, a Pequena Nell, a Pequena Sereia e muitas outras garotinhas frágeis nunca se tornaram “gente grande” porque eram destinadas a morrer pela salvação dos adultos. “Quando a morte leva um jovem,” Charles Dickens escreveu em Loja de Antiguidades, “uma centena de virtudes nascem nas formas de compaixão, caridade e amor para andarem pelo mundo e abençoá-lo”
Muitas dessas salvadoras juvenis se adequam no estereótipo de “pequena loirinha inocente” retratado nesse agora infame, tweet; mas ninguém tanto quanto a Pequena Eva, em “A Cabine do Velho Tomás” (Uncle Tom’s Cabin) de Harriet Beecher Stowe. Em um dormitório espaçoso decorado com cortinas brancas de musselina, uma mesa de alabastro e vasos de mármore, a moribunda Pequena Eva, pálida e temente a Deus, distribui mechas de seu cabelo castanho-dourado junto com pitacos de sabedoria cristã. O fato de ser loira, é ligado com beleza e retidão em todas suas nuances semânticas. Um de seus cachos “brilhantes” era como “uma coisa viva”, enrolando-se em torno do dedo de Simon Legree para prevenir um de seus muitos atos de brutalidade.
A Pequena Eva também é famosa por aparecer em retratos simbólicos com a escrava órfã Topsy, uma vítima de abusos severos: “Ali estavam as duas crianças representações de dois extremos da sociedade: a justa, criança de raça superior, com cabelos dourados, olhos profundos, rosto nobre, sue espirituoso com seus movimentos como se fossem de uma princesa e a sua negra, sagaz, sutil, totalmente submissa e ainda grave semelhante. “Nessa cruel e bruta justaposição, Stowe muito provavelmente estava procurando ampliar as energias protetoras geradas pela beleza para uma inocente vítima de injustiça social, entretanto Topsy, contrariando a todas as expectativas, sobrevive e tem a chance de se tornar “um anjo para sempre”. “Tal como se você fosse branca” Eva a tranquiliza, usando a frase que faz um alarme disparar na nossa cabeça.
As mortes de meninas e mulheres loiras têm um jeito certo de como monopolizar as mídias publicitárias, tal como a frenética cobertura da imprensa dos homicídios de Jon-Benet Ramsey e Natalie Holloway, o que deixou isso bem claro. Seus assassinatos foram muito mais enfatizados do que as mortes de “outras meninas negras quaisquer” (esse “quaisquer” traz consigo um “soco” desumanizador) ou, nesse caso, de ninguém que viva abaixo da linha da pobreza e não tenha uma “auréola” de cabelos loiros.
Em “Jogos Vorazes”, Suzanne Collins expande o mito sobre garotas salvadoras para incluir múltiplas identidades étnicas. De repente, nós temos o mesmo número de oportunidades de sofrimento permitindo uma garota de “pele e olhos escuros” assumir um papel uma vez ocupado por “pequenas loirinhas inocentes”. Duas vezes descrita como “uma sombra” no livro, Rue também é uma espécie de par sombrio da irmã de Katniss, Prim, na qual tem “cabelo claro e olhos azuis” tornando-a uma logica e culturalmente candidata a ter uma bela morte. (As duas têm nomes de flores e são parecidas em “tamanho e comportamento” e são descritas partilhando a mesma estatura esbelta.) Mas é Rue quem morre, e Katniss está determinada a vingá-la, e “tornar sua perda inesquecível”.
Dada a permanência dos estereótipos mais antigos, não é novidade de muitas maneiras que a raça superou a violência em nossos esforços para trabalhar com as inquietações culturais levantadas pelo filme “Jogos Vorazes”.
Enquanto nosso apetite por violência na tela permanece inalterado, nós retemos um gosto especial pelo que o historiador francês Philip Aries chama de “mortes bonitas”—vítimas cuja inocência tão carismática mascara a desagradável bagunça em cenas de leitos de morte reais. Quem precisa da Madame Bovary quando você pode ter o poder de sentir-se bem com a Pequena Nell? Como se pressionasse o interesse em falar sobre a etnia de Rue, “Jogos Vorazes” traz a tona essa inquietante obsessão cultural: tornar a morte de uma jovem mulher “a coisa mais poética do mundo” como foi astuciosamente colocado por Edgar Allan Poe quando isso se tornou sua assinatura.
Há beleza na morte de Rue — sua expressão se torna serena — o que rapidamente se torna uma oportunidade para o luto sentimental. Mas sua morte é um assassinato, retratado com uma franqueza impiedosa no filme. Quando uma lança a perfura, ela cambaleia na nossa direção, seu olhar vago e uma feição de horror estampada no rosto. Katniss Everdeen entende que lágrimas autoindulgentes não são o suficiente nesse caso. Então, ela se vira para as câmeras da Capital e levanta três dedos em um gesto que representa solidariedade com os habitantes do Distrito 11. A câmera corta mostra as cenas de uma rebelião no distrito onde os trabalhadores são rotineiramente chicoteados para manterem-se submissos.
As mortes da Pequena Nell, de Dickens, e a Pequena Eva, de Stowe, nos deixam cheios de pena e expurgam nossos medos tanto quanto nos aproveitamos da nossa habilidade em simpatizar com vítimas pequenas e mansas. Suzanne Collins complicou essa tradição: A morte da Rue também é bonita, e o seu processo de luto vai por partes ainda que breves, com interessantes aspectos estéticos. Mas seu assassinado é também potente como um Coquetel Molotov, aumentando a rebelião ao invés de financiar a redenção. Isso nos alerta contra o sentimentalismo das mortes de inocentes enquanto, ao mesmo tempo, lembramos-nos de nos redimir do catalítico poder da empatia.
E vocês, o que acharam do texto e das questões apresentadas sobre a maneira de ver a morte de crianças?
Comentários
7 respostas para “[Reportagem] Pequena, loira, inocente e morta”
Vocês do D13 estão de parabéns como sempre, ótimo texto!
Por mais que eu soubesse que a Rue iria morrer eventualmente, chorei pelo resto do dia quando aconteceu (sem mentira nenhuma).
Mas a morte da Prim me pegou de surpresa. Fiquei tão chocada que não consegui nem chorar, até aquela parte em que ela vê o Buttercup – confesso que nunca chorei tanto ao ler um livro em minha vida.
Confesso que não chorei na morte de Rue, nem na morte de Prim, sempre fui forte nesse sentido. Mas quando Finnick morreu… Eu joguei o livro na parede, cai no chão e chorei por umas 3 horas seguidas (sem mentira). 5 minutos depois peguei o livro do chão e coloquei de volta na estante. ;( Nossa… esse livro me mudou completamente. Descobri que não sou de ferro. A morte do Finnick foi completamente desnecessária. Assim como a de Prim, mas a morte do Finnick realmente me deixou mal :,(
Amei o texto. Sou cada vez mais fã do Distrito 13.
Com relação as mortes, fiquei bem emocionada com a morte da Rue. Sabe, quando dá aquele nó na garganta. Mas não cheguei a chorar. Quando o Finnick morreu, meu Deus, fiquei com aquela expressão de – O que?! Como?! Por que?!!!. E a morte da Prim, que foi tão inesperada e tão rápida que nem deu tempo de digerir. Tive que reler aquele capítulo.
Só chorei em dois livros: Harry Potter (morte do Dobby e do Dumbledore), e no livro “As aventuras de Pi” que chorei que nem uma louca, na descrição das cenas da zebra, a macaca, e a hiena.
É isso pessoal…
Beijosss… adoro vocês!
Sim,eu confesso que na morte de Rue eu chorei,mais na morte de Prim eu realmente fiquei sem saber como tinha acontecido,uma hora ela tava entrando no palacio,e na outra bum tá morta! A morte do Finn foi a que mais me afetou,tipo eu tive que ficar lendo,relendo,e lendo de novo para entender o que realmente tinha acontecido!
eu chorei na morte dos 3 mais a do finnick morreu eu chorei durante os dois capítulos seguintes
a morte da Prim,nao me tocou tanto até pq foi rapida demais, nao deu tempo de reações e definitivamente nao era algo que esperavamos, mas a morte do Cinna e do Finnick, realmente me deixaram sem chão. :/
Texto bom pra caramba!! Me lembrei agora da Negrinha de Monteiro Lobato…