A reportagem mensal de dezembro do D13 traz um texto publicado pela The New Yorker em março deste ano. Ele fala sobre o tumblr criado para mostrar tweets sobre Jogos Vorazes, especialmente àqueles relacionados à escolha dos atores, especialmente Rue e Thresh, para a adaptação cinematográfica do livro. Um dos principais pontos levantados pelo perfil, e que é discutido no texto, é a dificuldade e o preconceito de várias pessoas a aceitarem a escolha de atores negros para interpretar dois dos principais personagens da história.
Nem sempre é fácil para os fãs de qualquer série aceitar as escolhas de determinados atores para interpretarem seus personagens favoritos nas telas. Contudo, como o texto mostra, muitas vezes essa questão pode se tornar muito séria e deve se tomar bastante cuidado. Neste contexto, o texto aproveita para levantar outra questão importante para nós leitores, a interpretação visual do que estamos lendo, sem contar a importância de se diversificar os personagens da literatura.
A tradução do texto você confere abaixo. O original pode ser lido aqui.
Brancos até provados negros: imaginando raças em Jogos Vorazes
Por Anna Holmes | Publicado em 30 de março de 2012
Na terça-feira, 28 de fevereiro, um homem canadense de 29 anos fã da trilogia distópica jovem adulta de Suzanne Collins, Jogos Vorazes, entrou na popular plataforma de blog Tumblr pela primeira vez e criou um site que chamou de Tweets de Jogos Vorazes. O jovem, a quem chamarei de Adam, estava rastreando uma tendência perturbadora entre entusiastas de Jogos Vorazes: leitores que não conseguiam acreditar – ou aceitar – que Rue e Thresh, dois dos mais importantes e queridos personagens dos livros, eram negros, e estavam postando comentários racistas.
Adam, que leu e se apaixonou pela trilogia ano passado, inicialmente encontrou esses tipos de sentimentos no verão de 2011, quando começou a visitar sites, fóruns e quadros de mensagens freqüentados pelos fãs da série, que estavam cheios de notícias sobre a versão cinematográfica do livro. (O filme, lançado há exatamente uma semana, conseguiu incríveis 152 milhões de dólares em seus três primeiros dias em cartaz.) Depois que se iniciou uma discussão na seção de comentários de um post da Entertainment Weekly que sugeria a escolha da jovem atriz negra Willow Smith* como a personagem Rue, ele percebeu que comentários racialmente insensíveis de fãs de Jogos Vorazes eram frequentes, não raros. Ele logo começou a buscar no Twitter por tweets que incorporassem hashtags – #hungergames – usados pelos devotos do livro. Como as conversas encontradas em quadros de mensagens, algumas das opiniões eram cáusticas, ou até completamente racistas; entretanto, diferentemente das postagens em fóruns de fãs, os comentários no Twitter eram geralmente ligados a identidades reais.
“Naturalmente Thresh seria um negro,” tuitou alguém chamada @lovelyplease.
“Eu estava animado com Jogos Vorazes. Até saber que uma garota negra interpretaria Rue,” escreveu @JohnnyKnoxIV.
“Por que Rue é uma garotinha negra?” @FrankeeFresh queria saber. (ela acrescentou ao seu tweet uma hashtag de conselho #sejamfieisaolivroCARA.)
Adam ficou chocado – Suzanne Collins tinha sido bem explícita quanto à aparência, se não à etnia, de Rue e Thresh, que, juntos com outras vinte e duas crianças, são jogados em uma batalha de vida ou morte, meio Senhor das Moscas, que dá nome ao livro. Ele começou a salvar imagens dos tweets ofensivos e postá-los no Instagram. Adam logo decidiu que a funcionalidade do Instagram era muito limitada para seus propósitos – usuários podem ver fotos de pessoas que seguem, mas não as compartilham facilmente – então ele resolveu brincar com tecnologias diferentes de mídias sociais e mudou para o Tumblr, que, como o Twitter, permite que os usuários “rebloguem” posts de pessoas que seguem, assim aumentando exponencialmente seu alcance.
No início, Adam, que trabalha como executivo financeiro de um grande banco multinacional de dia, tinha apenas algumas dezenas de seguidores. Em seu primeiro post, com o título “Apresentando… Tweets de Jogos Vorazes!” ele explicou que tinha criado o site para “mostrar todos os tweets idiotas que tenho visto relacionados a Jogos Vorazes”. Ele postou depois disso seu primeiro print tirado do Twitter, cortesia de alguém chamado @MAD_1113, que escreveu, “Rue é negra?!? Quêêê?!” Uma pessoa, talvez o primeiro seguidor de Adam, “curtiu” o post.
No meio de março, os prints de Adam estavam regularmente recebendo cinco, dez, às vezes vinte “curtidas”. Outros usuários do Tumblr estavam “reblogando” Tweets de Jogos Vorazes e fazendo seus próprios comentários junto com o de Adam. (Em resposta ao tweet de uma jovem chamada Kayla, que perguntou, “por que Rue é negra?!?! #WTH #problemasdejogosvorazes”, Adam respondeu, “Melanina. Rue é negra por causa da MELANINA.” “Oh, meu Deus, Kayla, você não pode simplesmente perguntar às pessoas por quê elas são negras,” acrescentou um usuário do Tumblr chamado beastieeyes22.) Semana passada, quando o filme de “Jogos Vorazes” estava prestes a chegar aos cinemas, o Tumblr de Adam estava recebendo dezenas, até centenas, de “reblogs” e respostas. Quando o filme estreou, o site era viral: o contador de seguidores de Adam passou dos quatro dígitos, e foi mencionado em sites como CNN.com, Buzzfeed, e Jezebel, que fez uma história que acabou por ser a mais visualizada da história do site, com quase dois milhões de visualizações.
Em retrospecto, é fácil ver por quê Tweets de Jogos Vorazes deslanchou: o projeto é uma mistura potente de crítica à cultura pop, compartilhamentos em redes sociais, declarações provocativas, e humilhações públicas. Mas mais importante, e sem dúvida mais preocupante, é o que a timeline de tweets ignorantes de Adam – que ele chama de “o depósito da morte” – diz sobre a falha na imaginação de uma certa geração. (Olhando as fotos dos perfis dos tuiteiros, sugere-se que a maioria dos comentários eram escritos por adolescentes e jovens com vinte e poucos anos. Jezebel reportou depois que a maioria das pessoas citadas em Tweets de Jogos Vorazes deletou as contas ou as deixou privadas.)
Além de oferecer aulas para a má compreensão na leitura, Tweets de Jogos Vorazes – há agora mais de 200 no blog – iluminou antigas tendências e tensões raciais. Os acessos de raiva em 140 caracteres eram microcosmos das maneiras como a humanidade das minorias é frequentemente negada e contrariada, e marcaram quão furiosamente condicional a empatia pode ser. (“Kk me chamem de racista mas quando descobri que rue era negra a morte dela não foi tão triste”, escreveu @JashperParas, que finalizou seu tweet com a hashtag #eumeodeio.) Isso também nos faz perguntar: Se as histórias que nos contamos sobre o futuro, por mais perturbadoras que sejam, não incluem pessoas negras; se leitores de “Jogos Vorazes” são tão cegos a ponto de pular os detalhes e temas específicos da autora sobre aparência, raça, e classe, então o que isso quer dizer sobre as histórias que nos contamos sobre o presente?
Adam diz que o momento pivô na evolução de Tweets de Jogos Vorazes veio perto de 23 de março, depois que ele postou o tweet de alguém chamada Alana Paul, uma garota morena e pequena que usava o apelido @sw4q. O tweet de Alana não era o mais ofensivo dos claramente racistas (esse prêmio poderia ir para Cliff Kigar, que usou a “bomba N”, ou para @GagasAlexander, que reclamou de “uma garotinha feia com fralda… no cabelo.”) mas talvez o mais conclusivo. “Momento estranho quando Rue é uma garota negra e não a loirinha inocente que você imagina,” ela escrever. Ela mencionou uma amiga no tweet, @EganMcCov.
“Aquele tweet foi muito conclusivo, em termos de uma mentalidade que provavelmente é bem espalhada,” diz Adam, falando suavemente de seu escritório no distrito do centro financeiro de Toronto. Ele não parece nervoso, mas ele também não está feliz. As frases “uma garota negra” e “loirinha inocente” estão ecoando na minha cabeça enquanto ele fala, assim como pensamentos sobre como os heróis em nossas imaginações são brancos até que se prove o contrário, uma variação do princípio de inocente até provado culpado que, para tantas minorias, é rotineiramente usado.
Adam me conta que no post com o print do tweet de Alana ele acrescentou, “Lembram daquela palavra ‘inocente’? É por isso que Trayyon Martin está morto.” Enquanto ele diz isso, penso na mesma coisa: da associação que nossa cultura faz de brancura com inocência, de uma criança descrita sem um adjetivo, de uma criança considerada insignificante e logo invisível por causa de seu tom de pele. “Sou invisível, entenda, simplesmente porque as pessoas se recusam a me ver,” explica o protagonista de outro famoso trabalho de ficção, “Homem Invisível” de Ralph Ellison, publicado seis anos atrás. “Invisível” pode significar não visto, mas da mesma forma fala da inabilidade de outros de ver além de algo, ou de alguém. Chamar Rue de “uma garota negra” é uma versão disso, assim como a perseguição e assassinato de Martin de 17 anos, que, por algumas histórias, foi morto pelo auto-intitulado vigilante de uma comunidade na área de Orlando porque tudo o que George Zimmerman podia ver era que ele era jovem, homem, e negro.
Não está claro se Suzanne Collins previu tais reações, ou se ela as encontrou quando o livro foi publicado em 2008. (As tentativas de obter comentários da autora foram frustradas, mas Lionsgate, a distribuidora do filme, soltou um comunicado elogiando a paixão dos fãs que falaram contra os comentários racistas, dizendo, “aplaudimos e apoiamos a ação deles”.) Adam diz que acredita que a autora notoriamente avessa à imprensa superestimou seu público, e imagina se os autores tem ou não responsabilidade de serem mais explícitos quando apresentam personagens não-brancos em seus livros. Acredito que Collins sabia muito bem o que estava fazendo; afinal, na imaginação da autora, a própria Rue é invisível para a maioria dos outros personagens de Jogos Vorazes, uma “sombra” rápida e cheia de recursos, geralmente não vista ou não notada por quase todos, menos a protagonista e heroína do livro, Katniss Everdeen. É um conceito que parece ter sido bem trabalhado demais.
“As pessoas frequentemente falam sobre alfabetização com palavras, mas há algo como alfabetização visual e temática,” diz Deborah Pope, a diretora executiva da Fundação Ezra Jack Keats, que encoraja a diversidade em livros infantis. “Eu acho que alguns desses jovens simplesmente não leram o livro de verdade.” (O clássico destruidor de barreiras do Sr. Keats, “O dia de neve”, que celebra seu qüinquagésimo aniversário esse ano, revolucionou a literatura infantil sendo o primeiro livro ilustrado de sucesso com um protagonista negro.) Pope me diz que as informações analisadas pelo Centro Cooperativo de Livros Infantis de Madison, da Universidade de Wisconsin, descobriu em 2010 que apenas 9% de 3400 livros infantis publicados naquele ano possuíam diversidade cultural ou étnica significativa. Ela destaca que o padrão branco – nos livros, assim como em outras formas de mídia em massa – é aprendido e internalizado cedo, incluindo por crianças de cor. É necessário vigilância – e consciência – para superar. “Eu entendi as descrições [de caráter e raciais] de Jogos Vorazes” imediatamente, diz Adam, de descendência caribenha. “Mas aí, toda vez que leio alguma coisa, imagino, ‘onde posso encontrar o personagem que ME representa?”
*A autora se equivocou em relação aos nomes: a matéria refere-se a Willow Smith, filha de Will Smith e que nada tem a ver com Jogos Vorazes. Willow Shields, por outro lado, é a intérprete de Prim, a irmã de Katniss. Amandla Stenberg é a atriz que deu vida a Rue.
Para quem ficou curioso para ver o tumblr de Adam basta clicar aqui. É interessante observar que em uma das publicações recentes o autor destaca a escolha de Jeffrey Wright como Beetee. Outro ponto interessante é que ele não se limita apenas a falar sobre Jogos Vorazes, como mostra o post sobre a opinião de jovens sobre um presidente negro.
E agora queremos saber: como vocês se sentiram em relação à escolha dos atores e as reações dos fãs?
Comentários
11 respostas para “[Reportagem] Brancos até provados negros: imaginando raças em Jogos Vorazes”
Sinceramente,m dá nojo ver que as pessoas ainda tem esse pensamento escroto, pessoas que não evoluíram. ridículos. Mas sempre me incomodou o fato de não ler livros com pessoas negras, geralmente são todos brancos e na adaptação pra tv ou filme, um ou dois personagens são transformados em negros. Se você parar pra pensar o preconceito começa aí, já que o próprio autor se mostra racista (mesmo que inconscientemente). Triste.
Ou véi, se a autora falo que ela era negra, pra que faze esse babafá td?
Ao meu ver os atores foram muito bem escalados, tanto de Jogos Vorazes como de Em Chamas. Tenho pena desses coitados que são racista. So existe uma raça, a humana, o que nos diferencia é o tom de pele. Se eles se acham tão superiores, deveriam ser mais bem informados… Racismo é algo que se aprende em casa.
Não sei como existem pessoas que ainda pensem assim no século 21…
Como li o livro depois de assistir o filme já sabia que a Rue era negra e me emocionei do mesmo jeito que no livro, tanto com ela quanto com Thresh quando deixou Katniss livre por Rue, são 2 atores fazendo seu trabalho de forma excelente não importando sua raça! Sinceramente não entendo como isso pode ainda existir!
Ai, ai, esses “Fãs”…
Muitas pessoas acham que racismo é só quando você tem ódio de pessoas negras ou algo assim. No entanto, é cada um desses pequenos detalhes que mantém o preconceito enraizado. Por exemplo, a maioria das pessoas, quando lê sobre algum personagem cuja cor de pele não é citada, automaticamente o imagina branco. Quando personagens brancos são descritos, muitas vezes a cor de pele nem é mencionada, pois ser branco é o que a sociedade considera “padrão”. Como se negros fossem uma categoria a parte de ser humano. E mais: quantos hérois negros a gente vê nos livros, nos filmes, etc? Pouquíssimos, e isso é uma prova de que a nossa sociedade ainda é racista. É mais ou menos a mesma coisa com o machismo e a homofobia, por exemplo. Quantos heróis homossexuais ou mulheres nós temos no cinema? Bem menos do que homens heterossexuais.
Espera. Voltemos ao livro novamente. Vamos ler usando o cérebro. A Suzzane diversas vezes disse que a Rue era negra. Disse que sua pele era morena. Disse que seus olhos eram castanhos e seus cabelos negros como sua pele. Igualdade e inteligência pra quê, não é mesmo? O preconceito ainda me assusta.
ahnnn Willow Smith é a mini-rihanna filha de Will Smith, gente. A atriz que fez a Prim é Willow Shields haha
Que tipo de “fã” é esse que lê dormindo? Como pode uma pessoa ler e não prestar atenção?Eu particularmente nunca vi fãs brasileiros dizerem uma coisa dessa…#Americanospreguiçosos.Isso é de dar medo.Ridiculo
A pessoa é tão ”fã” que ignora completamente a descrição completamente explícita que a autora deixa tanto em ”Jogos Vorazes” quanto em ”Em Chamas” (quando a Katniss encontra as famílias do Tresh e da Rue…).
Isso, para mim, já passou do estágio de racismo. É burrice mesmo (considerando que racistas são pessoas burras, então dá no mesmo!).
Nossa ainda fico perplexa com a ignorância das pessoas!! se bem que quando eu fui aos EUA vi de perto esse sentimento neles, eles não se misturam ou muito raramente e ainda depois do fim da escravidão e depois da grande luta inclusive por martin luther king no país deles!!Eles que se acham tão superiores não só aos negros como aos estrangeiros, se mostram tão ignorantes ao ponto de declararem isso, fica claro que eles se mostram até inferiores!!Fracos que precisam criticar o outro para se sentirem melhores!!